A Realização de Assembleias em Tempos de Crise: Um Novo Caminho?
Imposição de restrições a eventos com aglomerações; recomendações dos órgãos de saúde para que se evite o contato físico; suspensão de diversas atividades. Certamente situações que a grande maioria da população não imaginava vivenciar, mas que todos precisamos enfrentar neste momento único de nossa história.
A pandemia de COVID-19 já apresenta consequências devastadoras em vários campos, expondo a fragilidade do sistema de saúde pública e ferindo gravemente a economia do país. Diversos eventos vêm sendo cancelados ou adiados e medidas como a suspensão de prazos judiciais e administrativos e a autorização para contratação pelo Poder Público sem necessidade de promover licitações foram adotadas em caráter emergencial como forma de endereçar dificuldades surgidas em razão do aumento de número de casos de infecção.
O cenário também se mostra um farto campo para os estudiosos do Direito, que discorrem sobre os impactos do coronavírus nas relações contratuais e seus efeitos nas relações de trabalho, entre outros. Alguma discussão também tem ocorrido quanto à viabilidade de cumprimento de prazos previstos em lei para a adoção de determinadas medidas, como o limite temporal para o preparo da declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física – DIRPF e para a realização das reuniões societárias para aprovação de contas do exercício fiscal anterior, por exemplo.
Pela legislação, tanto sociedades limitadas quanto sociedades anônimas devem realizar, dentro dos quatro primeiros meses de cada exercício social, uma assembleia para a revisar as contas dos administradores, examinar e discutir as demonstrações financeiras referentes ao exercício anterior e eleger administradores (quando for o caso).
Sem prejuízo da possibilidade de realização de outras reuniões e assembleias sempre que necessário, a lei criou esta formalidade especificamente para delimitar um prazo para a aprovação das demonstrações do exercício anterior, como uma forma de se evitar que a sociedade permaneça por um tempo excessivo sem revisitar números e criticar contas da administração. A legislação aplicável não traz penalidades a serem impostas caso a assembleia deixe de ser realizada dentro deste limite temporal. Contudo, o descumprimento desta regra expõe os envolvidos a possíveis discussões em razão de questionamentos por sócios minoritários, além de ter efeitos sobre a limitação de responsabilidade de administradores por seus atos (se adotada uma interpretação literal da norma), por exemplo.
Vivemos, no entanto, um momento extraordinário, que impõe restrições à capacidade de realização de um encontro presencial dos sócios. Ainda que o Código Civil contenha a previsão (no caso de sociedades limitadas) de que a reunião ou a assembleia é dispensável quando todos os sócios decidirem por escrito sobre a matéria que a ordem do dia, não existe regra semelhante aplicável a sociedades anônimas.
Surge, assim, um impasse para aquelas sociedades que, apesar do cenário atual, não pretendem deixar de cumprir as exigências legais a que estão sujeitas. A alternativa que volta a ser discutida é a possibilidade de realização de uma reunião virtual por meio da adoção de ferramentas já disponíveis e amplamente utilizadas, em especial nestes tempos de distanciamento social.
Em que pese haver regras aplicáveis a sociedades anônimas abertas regulando o procedimento de voto a distância que já permitiriam que um ou mais sócios atendam uma reunião remotamente, não existem normas que possam ser utilizadas como base para a realização de reuniões virtuais nas sociedades anônimas fechadas e nas sociedades limitadas.
No caso de sociedades limitadas, a própria lei já traz alguns artigos que podem ser utilizados para permitir o atendimento ao prazo legal para a realização da assembleia para aprovação das contas, como a regra mencionada acima que estabelece que a decisão por escrito dos sócios com relação aos itens da ordem do dia substitui a assembleia formal. Tais dispositivos, no entanto, muitas vezes não atendem às necessidades de todos os sócios, especialmente quando existe divergência de opiniões entre os sócios em relação a alguma matéria ou a necessidade de debate entre os sócios ou de esclarecimentos por parte dos administradores ou qualquer outra razão.
Já no caso de sociedades anônimas fechadas, estudiosos costumam apontar que a legislação vigente apresentaria obstáculos intransponíveis para a realização das reuniões virtuais. Estes argumentos estão baseados em regras que preveem a obrigação de que os acionistas assinem a lista de presença antes da abertura da assembleia e que estabelecem que a assembleia deve ocorrer na sede da companhia, exceto na ocorrência de um evento de força maior.
Este entendimento, no entanto, não deveria prevalecer, até porque já existem mecanismos que permitem a assinatura de documentos (incluindo lista de presença) a distância que ajudariam a ultrapassar as barreiras identificadas. Quanto à necessidade de realização da assembleia na sede da companhia, não se trata de uma restrição absoluta e a lei já torna possível que algumas assembleias aconteçam fora da sede social. Isto seria até mais defensável em um momento de pandemia como o presente.
Apesar de não haver ainda um posicionamento formal das autoridades registrais sobre o assunto, a dinâmica moderna dos negócios exige que reuniões ou assembleias ocorram por meio de encontros virtuais. A pandemia vem agregar mais um elemento à discussão, tendo em vista as limitações impostas pelas autoridades de saúde que sugerem que aglomerações sejam evitadas. Ademais, Juntas Comerciais de alguns estados contam com mecanismos que permitem a assinatura eletrônica de documentos submetidos a registro (outras, apesar de não contar com procedimento definido, já começam a promover o registro de atos assinados eletronicamente).
Neste sentido, o Decreto n.º 10.278 de 18 de março de 2020 deve ser entendido como uma primeira medida na direção de uma maior flexibilização da realização de reuniões a distância, ao estabelecer a técnica e os requisitos para a digitalização de documentos públicos ou privados, a fim de que os documentos digitalizados produzam os mesmos efeitos legais dos documentos originais. Pelos termos do decreto, para se equiparar a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno, o documento digitalizado deverá ser assinado digitalmente com certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, de modo a garantir a autoria da digitalização e a integridade do documento e de seus metadados, e seguir os padrões estabelecidos em seus anexos. Já na hipótese de documento que envolva relações entre particulares, qualquer meio de comprovação da autoria, da integridade e, se necessário, da confidencialidade de documentos digitalizados será considerado válido, desde que escolhido de comum acordo pelas partes ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.
Ou seja, a norma aparenta já proporcionar certa flexibilidade quanto à forma de comprovação da autenticidade do documento (e, consequentemente, das assinaturas que nele constarem).
De qualquer forma, a realização de reuniões ou assembleias em ambientes virtuais deve estar cercada de cuidados, a serem observados tanto pelos responsáveis pela condução dos trabalhos quanto por seus assessores jurídicos. O ideal é que as convocações e as atas de tais encontros sejam claras e tragam informações precisas sobre o local e formato da reunião, mediante a utilização de sistemas e procedimentos que permitam verificar e autenticar a participação dos sócios de forma inequívoca, o alcance dos quóruns de instalação e de deliberação de matérias e que assegurem a possibilidade de atuação ativa de todos os que desejarem se manifestar.
Tendo em vista as incertezas sobre a viabilidade do assunto, apesar de ser claramente o caminho a ser trilhado em um mundo cada vez mais conectado, o procedimento para a realização dos encontros virtuais e a elaboração das respectivas atas devem observar determinadas formalidades e conter dados suficientes referentes à forma de conexão, voto e outras questões para restringir a possibilidade de questionamento por sócios que eventualmente venham a se sentir prejudicados, quando aplicável. Mesmo sem previsão específica sobre o assunto, espera-se uma flexibilidade por parte das autoridades responsáveis pela análise e registro dos atos para viabilizar o registro dos documentos elaborados com a atenção e cautela que o assunto exige e que enderecem de forma adequada questões formais definidas em lei, para que tenham eficácia e validade perante terceiros.
Rio de Janeiro, março 2020
Este artigo tem caráter meramente informativo e traz apenas comentários gerais sobre a matéria em análise, de forma que não deve ser interpretado como contendo uma opinião, aconselhamento ou recomendação por parte de Stockler Nunes Advogados para aplicação a uma situação específica.